Morte, família e medo em livros muito poéticos
Estes três livros, cada um à sua maneira, abordam a relação com a morte, o universo familiar, a relação com a mãe, o medo e desconforto com possibilidades de perdas, com lugares e situações desconhecidas.
O pato, a morte e a Tulipa
Em um dia qualquer, o pato se depara com a morte e entende que sua partida está próxima. Quando ela diz que está ao seu lado desde o dia em que ele nasceu, o pato não se importa e vibra a cada manhã ao acordar e perceber que está vivo.
A partir de então, passam os dias juntos. Sobem nas copas das árvores, mergulham no lago e observam o horizonte. Vão se conhecendo e vivendo a vida. Essa amizade inesperada convida o leitor a refletir sobre como lidamos com a vida e os instantes que nos cercam.
Ao colocar a morte como protagonista, o enredo apresenta a amizade de carinho entre as personagens de forma muito habilidosa: "A morte tinha um sorriso amigo".
Detalhes da ilustração do livro.
Representada graficamente como uma caveira que veste roupas simples, a morte tem a mesma altura do pato e leva consigo uma flor delicada na mão – a tulipa. Assim, por meio da narrativa visual, o autor aproxima a morte do pato.
Muitas vezes, o que nos é desconhecido nos causa estranheza, insegurança e medo. Sabemos muito pouco sobre a morte em si e, por isso, a tememos. Ao ser representada com elementos conhecidos do universo infantil, a morte fica menos estranha e menos assustadora.
Outro aspecto que torna a morte menos assustadora se relaciona com o momento da morte do pato. Esse episódio é narrado sem exaltações ou desespero. A morte acompanhou o pato pacientemente até ele cumprir sua jornada e ela, seu trabalho.
Mas será que foi isso que nos tranquilizou em relação à partida do pato? Já escrevi aqui que quanto mais aproximamos a morte de informações que nos são familiares, ela se torna mais natural.
Erlbruch usou vários artifícios para fazer isso. Ele traz a morte ao centro da narrativa como personagem principal, desenha a morte do mesmo tamanho do pato, com roupas que nos são familiares e em tons neutros como a cor bege.
Quantas vezes já não encontramos livros ou ilustrações que falam sobre o tema da morte com imagens escuras, com cores pesadas e assustadoras. O bege é uma cor pesada? Não. Bege é uma cor neutra, assim como o cinza claro. Usamos as cores neutras, em geral, quando queremos equilibrar informações ou então deixá-las totalmente suaves, estáveis, equilibradas... tudo isso remete às cores neutras. E a escolhida por Erlbruch foi justamente o bege. Pense: o livro seria o mesmo se as cores fossem fortes? Com contrastes entre preto, branco, vermelho.... Seria uma outra leitura, não é mesmo?
O pato, a morte e a tulipa, de Wolf Erlbrunch. Ed, Companhia das Letrinhas
Sobre o livro
Publicado originalmente em 2007 (no alemão, Ente, Tod und Tulpe, editora Antje Kunstmann) e editado no Brasil pela primeira vez em 2009, pela Cosac & Naify, o livro volta agora a ser publicado pela Companhia das Letrinhas, com tradução revista de José Marcos Macedo e projeto gráfico original.
Sobre o autor
Wolf Erlbruch é formado em artes gráficas, trabalhou como ilustrador de publicidade e foi professor. Ilustrou e escreveu inúmeros livros para crianças. Dentre os importantes prêmios que recebeu ao longo da vida, destaca-se o Hans Christian Andersen, considerado o Nobel de literatura infantojuvenil. Faleceu em 2022, em Wuppertal na Alemanha, mesma cidade onde nasceu.
Outros livros de Wolf Erlbruch, publicados no Brasil pela Companhia das Letrinhas:
O rei e o mar (2010)
O urso que queria ser pai (1996)
Da pequena toupeira que queria saber quem tinha feito cocô na cabeça dela (1994)
No oco da avelã
No oco da avelã, Paul, o protagonista, aprende que a vida tem seu ciclo e cada ciclo deve ser respeitado. Ao encontrar a morte na rua procurando por sua mãe doente, Paul a prende dentro de uma casca de avelã e acredita, por alguns instantes, ter resolvido seu problema.
No entanto, tudo começa a desandar: os pescadores não conseguem mais pescar, o açougueiro não consegue mais abater seus animais, os ovos não podem mais ser quebrados e os vegetais não são mais arrancados da terra. Confrontado pela mãe, Paul promete libertar a morte. O entendimento da morte como parte do ciclo vital é justamente o que faz Paul aceitar o pedido da mãe.
Diferentemente do que ocorre na obra O pato, a morte e tulipa, a morte, em O oco da avelã, é representada por uma senhora, com uma grande foice, instrumento para tirar a vida, encapuzada e muito maior que o menino Paul. Essa relação de tamanho entre os personagens vai mudando de acordo com o tamanho do medo de Paul da morte. Quando ele pega a foice e começa a bater na morte, sua coragem aumenta e a morte diminui. Essa construção visual é mais uma maneira de trabalhar a relação do medo com o desconhecido.
Detalhes da ilustração do livro.
No oco da avelã, foi escrito por Murie Mingal, que nasceu em 1961 na França. Depois de passar por diferentes cursos começou a se dedicar exclusivamente à literatura.
Com essa obra, Murie nos faz refletir sobre o momento da morte, a expressar nossos medos e nos ajuda a compreender de que não há vida sem morte.
No oco da avelã, de Muriel Mingau. Ed. SM Educação
Sobre a autora
Muriel Mingau nasceu em 1961 em Nontron, França, em uma família de origem haitiana. Morou por trinta anos em Paris, onde teve uma formação eclética: estudou Letras, Teatro e Contabilidade. Na década de 1990, passou a se dedicar somente à literatura.
Sobre a ilustradora
Carmen Segovia nasceu em 1978 em Barcelona, Espanha. Cresceu entre Cerdanyola, a periferia de Barcelona e o deserto de Tabernas, na província de Almeria. Depois de estudar Cinema e Cenografia, frequentou a Escola de Disseny i d’Arts Llotja e o Centre Universitari de Disseny i Art (Eina). Especializou-se em ilustração e hoje trabalha para jornais, revistas, agências de publicidade e grandes editoras internacionais. Também colabora com bandas e projetos musicais, além de desenvolver projetos pessoais de pintura e desenho.
A costura
Com a ideia de que um livro puxa outro, lembro-me de A costura, de Isol. Nesse livro, publicado pela Ed. Pequena Zahar, Lina é novamente advertida pela mãe para prestar mais atenção e parar de perder as coisas, que afinal de contas, estavam no seu bolso.
Para se justificar, Lina explica à mãe que tudo perdido vai para Lado de Trás, um lugar misterioso e desconhecido. Nele é possível encontrar chaves, guarda-chuvas e lápis de cor.
O livro é concebido com a linguagem visual do bordado. O verso do bordado no tecido, por exemplo, é um lugar específico na narrativa. É onde tudo fica muito confuso e desordenado se comparado com a frente do bordado. É o Lado de Trás, uma metáfora para falar do mundo paralelo de Lina. É uma outra maneira de abordar situações desconhecidas, lugares imaginários, temas sempre muito presentes no universo da criança.
Detalhes da ilustração do livro.
Chateada pela bronca da mãe, Lina decide costurar todos os buracos que encontra na cidade e se acha genial por resolver tão facilmente seu problema. Porém, aprende a mesma lição de Paul sobre os ciclos da vida e suas modificações. Ao tapar os buracos, fenômenos naturais se manifestam, sinalizando que algo está fora da ordem. Um grande nevoeiro cobre toda a cidade, sua avó fica frágil e com tosse. Logo Lina percebe que precisa resolver seu erro e com urgência, semelhante à urgência que Paul teve para liberar a morte de dentro do oco da avelã.
Sobre a autora
Marisol Misenta ou simplesmente ISOL, como é conhecida, nasceu em Buenos Aires, Argentina, em 1972. Sua especialidade é narrar por meio do diálogo entre imagens e textos. Possui 24 títulos publicados, com traduções em 17 idiomas. O trabalho de Isol como ilustradora e autora foi reconhecido internacionalmente com o Prêmio Golden Apple em 2003 e finalista no Prêmio Hans Christian Andersen (IBBY) nos anos de 2006 e 2008. Em 2013, ganhou o Astrid Lindgren Memorial Award (ALMA), uma das maiores distinções da literatura infantil mundial.
Outros livros que falam sobre a morte:
Pode chorar, coração, mas fique inteiro, de Glenn Ringtved, Ed. Companhia das Letrinhas
Contos de enganar a morte, de Ricardo Azevedo, Ed. Ática
Menina amedrontada, de Aline Abreu, Ed. Jujuba
Um fio de esperança, de Marjolijn Hof, WMF
Roupa de brincar, de Eliandro Rocha e Elma Fonseca, Ed. Pulo do Gato
Iris, uma despedia, de Gudrun Mebs e Beatriz Martín Vidal, Ed. Pulo do Gato
Mari e as coisas da vida, de Tine Mortier e Kaatje Vermeire. Ed. Pulo do Gato