Uma menina, ajoelhada na beira de um lago, olha seu próprio reflexo na água. Mas o que ela vê é um grande leão. Peraí, o que aquele leão está fazendo ali?
A pergunta se coloca já na capa do livro Os reflexos de Henriqueta, estreia da autora e ilustradora francesa Marion Kadi. O livro foi premiado na Feira de Bolonha na categoria Opera Prima em 2022 e lançado no Brasil pela editora Pequena Zahar com tradução da Dani Gutfreund.
Esse é um livro que pode passar batido na prateleira. Apesar do formato generoso (largo e grande), é impresso sem grandes requintes gráficos: brochura (a capa não é dura), laminação fosca, papel branco (offset). Mas vale ficar de olho nele.
A combinação de traços marcantes e paleta de cores pouco convencional (rosto laranja!) me fez questionar a beleza desse livro na primeira lida. Precisei reler para enxergar o que estava transbordando bem ali na minha frente. Sim, Os reflexos de Henriqueta é um livro que transborda.
Era uma vez
Um velho leão morreu e deixou seu reflexo vagando pela savana muito entediado e sozinho sem se reconhecer em ninguém ao seu redor.
Enquanto somos apresentados ao tédio do leão, tudo em torno dele vibra. As cores são fortes, o céu irradia um alaranjado vibrante, os pássaros voam escandalosos, as paisagens em tons de verde são cheias de detalhes. Há diversidade de animais na savana, ampliando as possibilidades de um encontro.
Como pode um leão se sentir sozinho com tanta coisa acontecendo?
Bom, o reflexo do leão sai da savana e encontra Henriqueta, uma garota introvertida. Ele dá um jeito de tomar o lugar do reflexo dela. No mesmo instante, ela se sente mais valente. Naquele dia, na escola, Henriqueta vibrou! Mas não demora para as coisas saírem do controle e ela se dar conta de que aquele não é o reflexo dela. Ela não é leão.
Henriqueta, seu reflexo e o reflexo do leão precisam aprender a viver juntos. E então passam a se divertir muito.
Os reflexos de Henriqueta tem uma rara riqueza nas ilustrações. As imagens só parecem simples. Se olhar bem, vai ver que não são.
O livro ilustrado é sempre cheio de significados do começo ao fim, nada está ali por acaso.
Antes de a história começar, carpas coloridas nadam no rio, em uma imagem nítida no verso da primeira capa.
Já no final do livro, no fechamento da narrativa, está a imagem invertida, menos nítida. É o reflexo do que está fora do rio, bagunçado por gotas de chuva no verso da quarta capa.
Henriqueta me inquieta
Carreguei o livro na bolsa por alguns dias e reli mais de uma vez. Me sentia cega diante dele e isso me inquietou. As camadas dessa leitura foram se revelando aos poucos e, por mais abertos que meus olhos pareciam estar, era como se eu não enxergasse o suficiente.
A menina, o reflexo, o leão, as cores, a riqueza das imagens, essa mensagem no final, o que é visto dentro do rio, o que é visto fora dele refletido na água, a única coisa que eu conseguia pensar era na carta da Força do tarot.
O tarot é um baralho com setenta e oito cartas, divididas em arcanos maiores e arcanos menores. Olha que lindo: arcano quer dizer segredo, o que está escondido, velado.
E qual é a relação do tarot com O reflexo da Henriqueta? A carta da força mostra uma mulher que segura, com naturalidade, a cabeça de um leão no alto de uma montanha em um dia ensolarado. Na leitura do tarot, cada carta tem um significado principal, lido principalmente quando elas estão sozinhas.
A carta da Força evoca uma qualidade feminina construída por amor-próprio e autoconfiança. Está ligada à ideia de fazer algo nada fácil, porém necessário. Tem a ver com valorizar própria confiança, acreditar em si mesmo, sem controlar os outros e sem ser dominado por eles.
Henriqueta se sentia tímida e insegura até que um leão virou seu reflexo. Parece mágico: refletir aquilo que está fora, do outro lado (do rio, da gente...). Até que ela se dá conta de que, apesar de ser divertida, aquela não era sua própria natureza. Ela procura seu próprio reflexo. E ele está embaixo da cama.
Nessas duas histórias – a do livro e a da carta – e em muitas outras, o leão simboliza instinto, coragem, uma força genuína. Henriqueta aprende a se reconhecer e conviver com seu reflexo e o reflexo do leão.
+ Tarot
A origem do tarot é muito discutida e bem polêmica. É certo que o baralho mais antigo data de 1450 e foi feito em Milão por um artista chamado Benifácio Bembo. Esse primeiro tarot se chamava Visconti-Sforza e foi pintado como presente de casamento pela união das duas famílias. Porém, a carta que me veio à cabeça, durante a leitura do livro, foi a de um baralho mais recente, de 1909, feito pelo oraculista Rider Waite com a artista Pamela Coman Smith.
+ Leões
Eu pensei no tarot, mas se a gente parar pra elencar todos os leões, que aparecem nas histórias simbolizando coragem e força, a lista é longa. O Leão Covarde, do Mágico de Oz; Aslam, o poderoso leão, de Nárnia; Cornelius, o leão-cordeirinho do clássico desenho da Disney; e como não falar de Simba, de O Rei Leão, ou do leão da Nemeia, que vira a capa de Hércules. Qual mais? Se lembrar de mais algum, conta pra mim?
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